As múltiplas faces do narcisista

As múltiplas faces do narcisista. Será que somos todos narcisistas?

Em Psicologia adultos por Elisabete Condesso

Quando ouvimos a palavra “narcisista” imediatamente nos lembramos de alguém arrogante, manipulador, prepotente, com sentimentos de grandiosidade e falta de empatia, alguém que só pensa nele próprio e que tem grande desprezo pelos outros. Mas se estas características definem o narcisista, quando analisadas mais profundamente, dai emerge uma imagem bastante diferente, que pode mesmo justifica alguma simpatia da nossa parte. De fato, emergem as múltiplas faces do narcisista. Mais do que isso, de uma certa forma, todos nós somos narcisistas!

Todos nós somos narcisistas, mas diferimos no tipo e grau

As múltiplas faces do narcisista. A verdade inquestionável é que, no fundo, todos nós somos narcisistas, ou dito de outra forma, todos nós nascemos com um “impulso inato” para percebermos que somos únicos, que temos valor e importância para os outros, ou mesmo que somos excecionais. De facto, nascemos com uma necessidade profunda de percecionarmo-nos a nós próprios como especiais e merecedores desse reconhecido pelos outros. No entanto, diferimos no tipo e grau de narcisismo que incorporamos, o que é explicado pela nossa personalidade, a forma como fomos acarinhados pelos nossos pais, as várias influências educacionais, sociais e culturais, etc.

Contudo, há que ter em conta que, como muitas outras coisas na vida, a dose adequada de narcisismo é o que se recomenda. Se tivermos narcisismo insuficiente, iremos sentirmo-nos mal connosco próprios, com sentimentos de inferioridade, insegurança e baixa automotivação, pelo que tenderemos a relegar as nossas necessidades e desejos para um plano secundário, em detrimento do que os outros querem, consumando assim um processo de subjugação. Teremos, então, propensão para a ansiedade e depressão, ou originar distúrbio do comportamento como a automutilação, anorexia e bulimia.

Mas se, pelo contrário, estivermos impregnados excessivamente de narcisismo, estaremos tão cheios de auto-admiração, presunção e arrogância, que teremos genuinamente falta de capacidade para nos preocupar com os outros, pois só estaremos interessados em gostar de nós próprios. Aqui teremos uma propensão para manifestar dificuldades de relacionamento com os outros, bem como apresentaremos uma tendência para ver as situações de forma irrealista.

Narcisista a olhar-se ao espelho
Narcisista a olhar-se ao espelho

Assim, deveremos estar no centro deste espectro de autoapreciação, onde possamos sentirmo-nos autoconfiantes, valorizados, estimulados, acarinhados e onde estaremos preocupados com os outros. Nós somos muito mais propensos a sermos otimistas e resilientes, a experienciar a vida de forma desafiadora e gratificante, em suma, a sermos felizes.

Como diz o Dr. Craig Malkin no seu livro Rethinking Narcissism: The Bad—and Surprising Good—About Feeling Special (2015) temos que compreender as múltiplas faces do narcisista: “No narcisismo não é tudo mau … Sentirmo-nos especiais … pode tornar-nos melhores amantes e parceiros, líderes mais corajosos e exploradores mais intrépidos. Pode tornar-nos mais criativos, e pode até ajudar-nos a viver mais tempo”.

Múltiplas faces do narcisista: quais as origens do seu comportamento?

Embora à primeira vista, a criança ou adolescente narcisista possa parecer mimada ou com um comportamento demasiado indulgente, numa análise mais profunda, concluímos que defende-se claramente contra um sentimento de baixa autoestima, bem como tenta evitar a vergonha e humilhação. De facto, o comportamento do narcisista deve ser percebido como uma defesa contra deceções, dores não resolvidas e inseguranças dolorosas.

Numa primeira impressão, podemos pensar que o narcisista diligentemente cultiva “virtudes” como a autoconfiança, o esforço árduo para atingir o sucesso, ou o superar-se dia-a-dia até atingir o perfecionismo, mas que quando compreendidas com maior precisão, não passam de tentativas falhadas para esconder os seus sentimentos de inadequação, fraqueza e não merecimento – os mesmo sentimentos que o vêm atormentando desde a infância.

Nestas aparentes múltiplas faces do narcisista podemos perceber que simplesmente ele não foi capaz de desenvolver durante a infância um vínculo positivo e estável com os seus cuidadores, de modo a poder sentir-se amado e aceite pelo outro. Quando em criança, o narcisista não terá obtido o carinho, atenção, validação, ou apoio dos seus cuidadores, concluindo dai que não era suficientemente bom ou digno para o justificar. Para esconder a sua autoimagem empobrecida, e defender-se desta situação “humilhante”, essa criança fabricou uma atitude, mentalidade e comportamento que tinha como objetivo sentir-se ela própria como digna e até com direito a um tratamento especial e superior.

Faces do narcisista, o sistema defensivo revela-se contra produtivo

Intimamente associado a este mecanismo compensatório exagerado, o narcisista assume um comportamento antissocial para desvalorizar, denegrir, enganar, e até mesmo desprezar o outro. Esse comportamento não é mais do que uma estratégia inconsciente do narcisista para sentir-se melhor, muitas vezes à custa dos outros. A tragédia final é que a maioria das “vítimas” do narcisista (ou mesmo a totalidade) acabam por abandona-lo, situação que reaviva os antigos sentimentos de vazio, abandono e vergonha.

Esta situação de abandono reaviva com extrema intensidade os mesmos sentimentos vividos durante a infância, o que obriga o narcisista a uma reação de “vingança”, em que procura reerguer a sua superioridade sobre os outros e denegrir ainda mais – o que podemos classificar como a “raiva narcisista”.

Tal reação inflamada constitui um esforço derradeiro do narcisista para proteger a sua vulnerabilidade tão seriamente ameaçada. Contudo, observa-se que se a defesa falha, o narcisista fica suscetível a afundar-se numa profunda depressão. Mas, mesmo quando a defesa atinge o seu objetivo, não compensa o que faltou no passado, pelo que o narcisista enfrenta constantemente uma intensa vulnerabilidade, pela qual passa a vida inteira e da qual tenta escapar a todo o momento. Dada a forma como o seu sistema defensivo funciona, o narcisista é incapaz de sustentar qualquer mudança de comportamento. Na verdade, em última instância, ele tem uma propensão a repetir os comportamentos auto-defensivos, mas ainda com maior intensidade.

Amor próprio do Narcisista
Amor próprio do Narcisista

Conclui-se facilmente que este sistema defensivo do narcisista é contra produtivo, tendo exatamente o efeito contrário ao pretendido. À primeira vista poderá parecer eficaz, mas explorando pormenorizadamente a sua “armadura psicológica” comprova-se, por exemplo, que o narcisista nunca consegue satisfazer o seu desejo mais íntimo de ser reconhecido como uma pessoa amável e boa. Tal ideia é diametralmente aposta à sua crença de que para sentir-se bem precisa ao mesmo tempo de ser perfeito e que os outros olhem para ele com inveja.

Reação intempestiva a qualquer crítica negativa

O narcisista poderá ser altamente qualificado na arte do disfarce e exibição de uma elevada autoestima, mas as suas inseguranças mais profundas acabam por emergir na sua frequente procura de elogio. A sua necessidade sintomática de admiração tem como fim sustentar um ego demasiado frágil. Ele, quando não é capaz de obter adulação externa, entra em colapso a partir de dentro. Esta vulnerabilidade é bastante visível na sua reação defensiva às avaliações negativas dos outros. Ao mesmo que é supercrítico com os outros (para relembrar a sua superioridade), o seu ego é tão frágil que quando alguém ataca as suas ações ou palavras, ele “dispara” para o que chamei anteriormente de “raiva narcisista”. No fundo, ele agarra-se desesperadamente a um sentido grandioso do “eu” e sente-se obrigado a defender a todo os custo o feedback negativo sobre si mesmo.

Faces do narcisista, o outro como “suprimento narcisista” e objetivação

Afinal de contas, enquanto criança, o narcisista foi ignorado, criticado, humilhado pelos seus cuidadores, ou mantido num padrão irrealista de exigência. Consequentemente, teve que desenvolver defesas potentes contra esta situação adversa, “bombardeando” constantemente o seu ego com mensagens que não eram mais do que um culto de ilusão, mas que acabaram por sobrepor-se às mensagens negativas repetidamente recebidas dos seus cuidadores. O narcisista precisava de combater as suposições desfavoráveis sobre ele mesmo. É esta a “ferida narcisista” e que conduz ao fenómeno do narcisismo patológico. Tendo sido os seus cuidadores incapazes de oferecer o carinho e amor necessário, o narcisista sente-se obrigado a persuadir ou coagir o outro para que este funcione como “suprimento narcisista”, numa tentativa de substituição. Neste sentido, observa-se uma objetivação do outro, ou seja, o outro é visto como um “objeto” quase no sentido do que significava na infância.

Relacionamento interpessoal permanece para sempre superficial

Só que tal objetivação serve igualmente o objetivo de diminuir a sua vulnerabilidade, diminuindo o outro, numa tentativa de neutralizar qualquer alternativa de poder. Tendo aprendido anteriormente a não confiar em ninguém, o resultado é a tão enraizada falta de empatia, pelo que não permite que o outro fique demasiado perto. Mesmo que num contexto de um relacionamento íntimo pareça seguro, o narcisista mantém o parceiro à distância, numa atitude defensiva para evitar a todo o custo qualquer risco emocional e agindo como forma de autoproteção. Assim, no fundo, a verdadeira intimidade com o outro permanece para sempre inacessível.

Narcisista a auto contemplar-se ao espelho
Narcisista a auto contemplar-se ao espelho

O narcisista não consegue atingir aquilo que mais anseia … sentir-se amado pelo outro

O infortúnio grave deste comportamento de salvaguarda do “eu” é que, acabando por se recusar (ou sendo incapaz) de abrir o seu coração ao outro, o narcisista nunca consegue alcançar profundamente aquilo que mais anseia, o que desesperadamente deseja e procura ao longo de toda a sua vida, que é sentir-se cuidado, reconhecido e amado pelo outro.

Elisabete Condesso / Psicóloga e Psicoterapeuta

© PsicoAjuda – Psicoterapia certa para si, Leiria

Imagens cortesia de Stuart Miles e Marin em freedigitalphotos.net

Sobre o Autor

Elisabete Condesso

Directora clínica da PsicoAjuda. Psicóloga clínica e Psicoterapeuta. Licenciada em Psicologia Clínica pela ULHT de Lisboa e com pós-graduação em Consulta Psicológica e Psicoterapia. Membro efetivo da Ordem dos Psicólogos. Título de especialista em “Psicologia clínica e da saúde” atribuído pela Ordem dos Psicólogos.