Refazer as relações familiares na pandemia

Como refazer as relações familiares na pandemia

Em Psicologia clinica por Elisabete Condesso

Devido à pandemia por COVID-19, as tensões familiares têm aumentado e as relações têm-se degradado com ruturas dos vínculos. Será possível refazer o sentimento de reciprocidade e das relações familiares na pandemia?

As recomendações das autoridades de saúde para o afastamento social têm vindo a alterar de forma severa as práticas sociais, colocando uma tenção permanente nas famílias e que podem obrigar a uma redefinição dos nossos valores.

O slogan que temos ouvimos de forma insistente é que “fique em casa”, “evite os contactos sociais”. Os meios de comunicação sociais como televisão, radio e jornais têm dado eco a esta mensagem. Através das redes sociais, a cada minuto, recebemos um apelo insistente acerca desta necessidade. Mas a questão para muitas famílias é “fique em casa com quem?”, “em que casa?”, “como tratar dos idosos e evitar a solidão?”, “como proteger e evitar os impactos negativos nas nossas crianças?“, “como recriar as relações familiares e mante-las saudáveis neste momento”. Estas são algumas das várias perguntas que procuramos responder neste artigo.

A pandemia está a interferir de forma significativa nas relações familiares

A pergunta de como recriar as relações familiares em tempos de pandemia coloca-se num momento em que o futuro apresenta-se muito incerto relativamente à evolução do COVID-19. Assistimos com muita preocupação a uma segunda vaga que novamente obriga a restrições severas e a uma obrigação de isolamento social muito restritivo.

A urgência da situação da pandemia leva a uma reelaboração das relações familiares relativamente à vontade dos sujeitos, dado que aciona e, de certo modo, inviabiliza uma divisão igualitária das tarefas familiares, interferindo de forma significativa na dinâmica familiar. No tempo atual, de facto, têm-se exacerbado os conflitos familiares, conjugais e intergeracionais. Conflitos e ruturas familiares irrompem (mesmo que atenuadas com recurso às novas tecnologias de comunicação), em particular devido a uma convivência forçada e prolongada dos familiares que coabitam praticamente 24 horas.

De facto, por um lado, temos assistido a um crescimento da violência doméstica e, por outro, a um aumento de tensão nas negociações para a atribuição do cuidado com dependentes. Acresce que toda esta situação se intensifica com o medo e possibilidade de morte, bem real, que nos entra todos os dias pela casa a dentro, hiper difundida pelos meios de comunicação social.

Casal chateados e irritados
Casal chateados e irritados

Interpretar as transformações nas relações familiares na pandemia a partir das alterações dos valores e práticas sociais

A reciprocidade de atenção e afeto familiar estão presentes nos diversos contextos socioculturais da nossa sociedade. É algo que faz parte da nossa identidade cultural, que nos define como povo Português, que sobretudo nos molda como indivíduos e nos define como pessoas. Está intrinsecamente presente no nosso “Eu”.

Em face da nova realidade imposta pela situação de pandemia, tem-se procurado compreender e interpretar as transformações nas relações familiares a partir do princípio da coexistência de mudanças e permanências de valores e práticas sociais.

Quando falamos de valores referimo-nos à autonomia e independência do individuo, ao direito das mulheres, das crianças e dos idosos. As práticas sociais englobam as relações familiares que coexistem entre os vários membros, ao nível familiar, conjugal e intergeracional.

A situação pandémica tem vindo a colocar em causa os nossos valores e práticas sociais!

A iniciativa da DGS e UNICEF para ajudar as famílias portuguesas

Várias iniciativas têm sido criadas por diversas organizações e entidades, quer publicas, que privadas, no sentido de alertar e ajudar a ultrapassar as dificuldades criadas pela situação que estamos vivendo de pandemia e confinamento social.  Uma dessas iniciativas foi promovida pela Direção-Geral de Saúde (DGS) e a UNICEF Portugal, com a criação de um webinar dedicado ao tema: “Famílias em tempo de pandemia: Direitos para todos”, que teve lugar no dia 7 de maio. Segundo os seus promotores, o objetivo era “ajudar as famílias portuguesas a responder às suas questões sobre a importância de manter as relações saudáveis, saúde e bem-estar de toda a família, no contexto atual da pandemia da Covid-19”. «Como fortalecer os laços entre as famílias e gerir momentos de maior tensão?» e «Como lidar com a nova dinâmica na vida das crianças, jovens, pais, mães e cuidadores/as?» foram algumas das questões abordadas no webinar da DGS e da UNICEF que pode rever na integra no canal do Youtube da Direção-Geral da Saúde: Famílias em tempo de pandemia.

A representar a DGS participou a enfermeira Bárbara Menezes, Coordenadora do Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil e representante da DGS na Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens. Pela UNICEF esteve presente Leonor Costa, da Direção de Políticas de Infância e Juventude.

Os cuidadores dos pais idosos veem o seu modo de vida desestruturado

A epidemia da COVID-19 está a impor a toda a geração idosa uma intensificação do vivenciar e ter presente a finitude da vida. A perceção da proximidade da morte aciona sentimentos contraditórios e transporta o idoso para um comportamento de ruminação acerca do tempo de vida restante. Para muitos que se encontram isolados socialmente dos seus familiares, tal situação conduz a um intensificar de sentimentos de ansiedade e depressão.

Cuidar de mulher idosa
Cuidar de mulher idosa

As gerações cuidadora dos familiares idosos veem-se obrigadas a rever os seus projetos de vida, ao mesmo tempo que, projetam para si mesmos a qualidade de vida que poderão alcançar ao atingir uma idade mais avançada. Ainda que os pais idosos não queiram ser um peso para seus descendentes, estes têm um sentimento de obrigação em relação aos seus velhos pais. Em geral, essas atribuições são distribuídas entre filhos e filhas – que se tornam cuidadores familiares – para evitar a concentração de responsabilidades em um único familiar.

Em tempo de isolamento social, para os cuidadores familiares que têm a cargo os dependentes idosos, as tarefas cotidianas intensificam-se, frequentemente, devido à ausência de auxiliares domésticos ou profissionais de saúde, dispensados com o receio do contágio ou devido ao próprio confinamento. Esta situação é agravada com a dificuldade de divisão de tarefas com outros familiares, levando a situações de desgaste e aumento de stress motivada pela obrigação familiar de executar esses cuidados. Assim, estes cuidadores familiares veem o seu modo de vida desestruturado, intensificando os conflitos familiares.

É o caso da família Oliveira, com um idoso a cargo com 92 anos. Durante o confinamento, não puderam continuar com a colaboração da cuidadora profissional, pelo que as filhas tiveram que assumir as tarefas domésticas, os cuidados e o acompanhamento diário do pai com problema da Alzheimer, diabetes e cardiopatia. Durante a semana, as irmãs dividiram as tarefas entre si, pernoitando uma delas na casa do pai. Esta alteração nas suas rotinas diárias com partilha de tarefas e trocas do “plantão” semanal é geradora constante de tensões e conflitos familiares.

Quando só um dos cuidadores familiares é “sacrificado”

Nas discussões familiares sobre o cuidado dos pais idosos, recorre-se à palavra “sacrifício” de alguns de alguns que supostamente estão em melhor posição de ajudar. É o caso dos filhos que moram longe dos ascendentes que podem argumentar não poder participar nos cuidados. Para além da argumentação “distância”, há também a discussão “sem família” versus os que têm sua “própria família”. O filho ou filha sem vida familiar é visto/a como mais “disponível” para o trabalho de atenção e cuidado.

A experiência da família Vasconcelos é reveladora dessa divisão desigual de distribuição dos cuidados com a mãe, a Sra. Olivia de 73 anos. Ela vive sozinha no Porto, mas perto da filha que tem vindo a cuidar dela. O filho vive em Lisboa, que tem duas filhas ainda pequenas, não conseguindo dar o seu contributo. Coloca-se a acusação de não retribui a dádiva recebida dos seus ascendentes e ser responsável pela sobrecarga da irmã, quando as tarefas deviam ser mais repartidas.

As novas tecnologias dão uma ajuda, mas não elimina a profunda solidão dos idosos

É importante salientar que as novas tecnologias, como o telemóvel e a videochamada, têm sido apontadas como um elo fundamental para quebrar o isolamento. A videochamada entre avós e netos, pais e filhos, irmãos funcionam como “visitas virtuais”. Contudo, muitos idosos não dispõem de conhecimentos tecnológicos ou acesso à internet, pelo que não podem recorrer a esses meios. É o caso da Sra. Olinda de 78 anos. Vive sozinha. Tem um grande sentimento de independência de que não prescinde. Do mesmo modo, vive com intensidade, mesmo que à distância, a vida da sua filha e netas. O teu telemóvel não tem acesso à internet e, sem o contacto visual com os familiares, ela sente de modo intenso o isolamento, o que agrava o sentimento de solidão. Em tempos de confinamento, não ter acesso aos novos meios tecnológicos é um duplo isolamento social.

Esta na hora de (re)descobrir as relações familiares, mesmo durante a pandemia

Se é verdade que a pandemia por COVID-19 fez crescer e aumentar as tensões familiares, bem visível no aumento do número de divórcios, também se constata que o isolamento forçado serviu de “empurrão” para juntou casais que já pensavam em dividir o mesmo teto. Filhos adultos voltaram a morar com os pais – e a redescobrir os afetos familiares. Casais separados entenderam-se para transformar o momento atual em algo menos penoso e traumáticos para os filhos.

A pandemia transformou o nosso cotidiano, aproximou uns, distanciou outros. Redefiniu o conceito de saudade. Criou o fenómeno de “proximidade excessiva”. Exigiu – e continua a exigir – doses extremas de paciência e equilíbrio nas relações familiares. Mas dá a oportunidade para cada um se conhecer melhor, ao mesmo tempo que concede-nos a possibilidade de fortalecer as nossas relações.

Filho e mãe idosa
Filho e mãe idosa

É o caso do Rui, de 32 anos, que morava sozinho em Lisboa. Devido à situação pandémica, foi forçado a abraçar o teletrabalho. Apesar dos inconvenientes de estar nesta situação, foi ao mesmo tempo uma oportunidade única para se aproximar da sua mãe. Logo que recebeu a noticias que ela tinha adoecido, não teve qualquer dúvida. Fez as malas e voltou para casa, 9 anos depois de ter deixado a cidade de Leiria, de onde tinha saído para ir trabalhar para a capital. Deste modo, pôde conciliar o trabalho e assistência à sua mãe.

“Estou preocupado com o momento que vivemos, mas é bom ter a oportunidade de olhar para trás, todos estes anos que estivemos mais afastados e estou feliz por reencontrar a minha mãe, e descobrir mais coisas sobre ela. Sinto que estou a fazer as pazes com o meu passado familiar”, conta-nos o Rui.

A situação pandémica também trouxe grandes desafios para os pais separados. Mas com compreensão e criatividade, e sobretudo com uma grande dose de boa vontade, ex-casais têm-se aproximando, deixando as divergências de lado.

Como exemplo, referimos o caso da Liliana e do ex-marido, separados à 7 anos, sem nenhuma convivência durante este período. Durante o confinamento encontraram-se quase todos os dias. Para ela poder trabalhar durante o dia, ele ficou com os filhos em casa, uma vez que estava em teletrabalho. À noite, ele deixava os filhos com a ex-mulher, onde pernoitavam. “Agora conseguimos conversar. Estou convencida que a nossa relação será melhor daqui para a frente”, disse a Liliana.

Um outro caso é o do Francisco, com 9 anos. Com os pais separados há 3 anos, ele sempre deambulou entre as casas dos seus progenitores. Alternava cada semana entre a casa do pai e da mãe. Quando a quarentena começou, os pais tomaram a resolução de deixaram o Francisco escolher com quem ficar. “Demos-lhe essa liberdade para que a quarentena fosse menos penosa para ele”, dia a Susana, mãe do Francisco.

Mas podemos manter as relações saudáveis neste momento?

Já diz o ditado que a melhor maneira de perder um ídolo é conviver com ele. A proximidade em demasia, forçada, devido à situação de confinamento, aumentou as tensões familiares e degradou os vínculos afetivos.

Há que começar por perceber que temos que preservar os nossos espaços de proximidade e ser capazes de organizar momentos de distanciamento voluntário, momentos em que combinamos não ficar no mesmo território. Estar com outras pessoas não é necessariamente uma situação de prazer continuo. Há momentos em que nós gostamos da privacidade, da quietude. Até porque só na presença da ausência é que dá para ter saudade. A presença continua não nos deixa saudosos de nada.

Redefinir o sentido de saudade

Deste modo, e como já referimos, esta situação de pandemia também redefiniu o sentido de saudade. Se por um lado, tivemos que ficar 24 horas com a família mais próxima, por outro fomos privados de tantas coisas, muitas das quais, provavelmente, não dávamos o devido valor. Agora temos uma maior perceção da sua importância devido à ausência temporária delas.

A saudade é a boa lembrança, é uma forma de recordação, é o desejo, aquilo que nos inclina na direção de querer estar num lugar, com alguma pessoa. Por isso, a saudade não é só de pessoas, mas também de situações, de circunstâncias, de coisas.

As circunstâncias e vivencias que esta pandemia nos trouxe, permitiu-nos aprender que algumas coisas que fomos deixando para segundo plano, afinal são mais importantes do que pensávamos. Já falámos da saudade, mas também temos que referir a amizade, a solidariedade e a família. São essenciais na nossa vida. Se nos juntarmos, conseguimos não desesperar. O desespero vem quando temos a perceção de abandono. Vamos pensar na possibilidade do reencontro com os outros, seja de sentimentos, empatia, compaixão.

E dá para ser feliz neste momento?

A felicidade não é um estado continuo. Não é algo que acontece o tempo todo, nem de todos os modos. Porque afinal de contas, a vida tem dificuldades, tem turbulências, tem tempos difíceis. Não dá para ser feliz o tempo todo, como também não dá para ser infeliz para sempre. Esta pandemia é algo ameaçador, mas temos que perceber que vale a pena continuar a lutar, que não podemos desistir. Porque como diz o proverbio: “Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe”. Sim, gosto da ideia que iremos abraçar novamente a felicidade.

Elisabete Condesso / Psicóloga e Psicoterapeuta

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Sobre o Autor

Elisabete Condesso

Directora clínica da PsicoAjuda. Psicóloga clínica e Psicoterapeuta. Licenciada em Psicologia Clínica pela ULHT de Lisboa e com pós-graduação em Consulta Psicológica e Psicoterapia. Membro efetivo da Ordem dos Psicólogos. Título de especialista em “Psicologia clínica e da saúde” atribuído pela Ordem dos Psicólogos.